Machado tem muito a ensinar ao leitor de hoje, diz o ensaísta inglês John Gledson na entrevista à revista Época.
ÉPOCA – Que idéias de Machado ainda são válidas para este século?
John Gledson – Em primeiro lugar, ele tinha aversão aos sistemas que explicam o Universo. Com o ceticismo de mãos dadas com a ironia, esvaziou as idéias altissonantes. Sua visão da psicologia humana é íntima e realista. Em especial nos contos, ele retratou a mulher vazia, vítima dos preconceitos que a limitavam. Não era feminista, mas quase.
ÉPOCA – Machado, um monarquista liberal, tinha consciência social?
Gledson – A visão social é uma das linhas de força de sua ficção. Apesar de odiar a escravidão, ele não abordou a situação ficcionalmente. Em Brás Cubas, o negro liberto Prudêncio compra um escravo só para maltratá-lo. Para ele, a maldade era inerente à escravidão. Machado também levou para sua obra a grande classe dos agregados, dominados pela oligarquia.
ÉPOCA – Ele não criticou a monarquia.
Gledson – Criticou, mas de forma alegórica. Esse tipo de procedimento não é freqüente nos contos. Mas, nos romances, acontece o tempo todo. No romance Quincas Borba, o personagem Rubião enlouquece. Ora, eu não pude evitar de associar esse nome a um dos nomes do imperador dom Pedro II, que se chamava Pedro Rubião de Alvarenga. Machado escolheu esse nome deliberadamente. É uma sátira à decadência da monarquia. Rubião enlouquece porque vai morrer... Nas crônicas, ele se expressou mais claramente com a República.
ÉPOCA – Como definir a visão de Machado sobre o Brasil?
Gledson – Ele tinha uma visão radical e original sobre a História, os políticos e as desigualdades sociais. Não foi só um ficcionista. Em uma carta ao amigo Afonso Celso, ele comenta que as dimensões continentais do Brasil não lhe pareciam uma vantagem, mas um perigo. Ele via o mundo como nós.
ÉPOCA – Em seu livro Por um Novo Machado de Assis, o senhor analisa tramas machadianas que abordam o sexo. Não é a visão “escolar” que temos do autor no Brasil.
Gledson – Eu ainda fico estarrecido com a ousadia com que ele descreveu situações em que o sexo se faz presente. Machado tinha uma visão lúcida das necessidades humanas – e do fato de a mulher ser sexualmente reprimida. Claro que não retratou situações como o faziam os escritores naturalistas, seus contemporâneos. Ele retrata mulheres com desejos sexuais, como Eugênia, em Brás Cubas, que trai o marido. Há Marocas, do conto “Singular Ocorrência”. Ex-prostituta, amante de um homem casado, ela decide sair à rua em uma noite de solidão para encontrar um homem. É o retrato de uma mulher que busca a aventura sexual fortuita. Nem mesmo um tema tabu como o homossexualismo lhe escapou. No romance Casa Velha, o episódio do estupro de um padre por um bispo é mencionado para simbolizar o domínio do padre Lalau sobre o jovem Félix. No conto “Pílades e Orestes”, existe a sugestão de amor homossexual entre os dois personagens femininos. E não podemos esquecer de uma situação ainda mais velada: em Dom Casmurro, Bentinho diz que Capitu “era mais mulher que eu era homem”. Em certo trecho, Bentinho palpa o braço musculoso de Escobar – e sente atração sexual. É uma reação reprimida.
Mente Aberta
Revista Época. Edição 541 - 29/09/2008
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