segunda-feira, 29 de setembro de 2008

“...depois, querida, ganharemos o mundo” (Machado de Assis 1839 - 1908)

A fotografia de Machado de Assis por Marc Ferrez tem a data presumida de 1890. Mas o modelo parece ter menos de 50 anos, comparado à imagem das fotos seguintes.



A portuguesa Carolina (em foto de c. 1890) casou-se com Machado de Assis (acima, aos 25 anos) em 1869. Ela foi trazida do Porto depois de uma suposta desilusão amorosa. Viveram juntos por 35 anos.


As duas cartas manuscritas de Machado a Carolina que restaram da correspondência íntima do casal foram reencontradas há um mês no Museu da República, do Rio de Janeiro. Elas foram escritas no mesmo dia, em 2 de março de 1869, no calor da paixão do autor pela noiva, que estava em Petrópolis com o irmão. A letra é de difícil leitura. O trecho sublinhado havia sido transcrito erroneamente.


Paris tropical: A estreita Rua do Ouvidor era o centro das compras, da moda vinda de Paris e dos encontros na capital do Império.


Em foto de 1905, Machado posa para o quadro de Henrique Bernardelli.



A profética frase de Machado de Assis faz parte de um conjunto inédito de cartas que ÉPOCA revela com exclusividade. Hoje, o maior escritor brasileiro começa a ser reconhecido em todo o mundo


Nos cem anos de sua morte, comemorados nesta segunda-feira, 29 de setembro, Machado de Assis ainda é capaz de provocar surpresas. Sua extensa obra – nove romances, 200 contos, uma dezena de peças de teatro, cinco coletâneas de poemas e milhares de crônicas – está praticamente canonizada e o torna, indiscutivelmente, o maior escritor do Brasil. Mas quem é esse gênio? É o austero fundador da Academia Brasileira de Letras (ABL)? O monstro cerebral pessimista e sarcástico como o descreviam os modernistas? Ou o herói do povo, como defendiam os primeiros socialistas? Embora os estudos machadianos tenham gerado dezenas de milhares de títulos – Machado é o ramo do conhecimento literário brasileiro mais estudado –, sua vida permanece envolta em mistérios, em especial os anos de juventude. Como um sujeito pobre e mestiço, numa sociedade ainda escravagista, conseguiu se tornar o mestre da cultura brasileira?
A revista Época teve acesso, com exclusividade, a um conjunto de cartas ainda inéditas de Machado, que ajudam a responder a essas perguntas e a desvendar o enigma machadiano. “Pela primeira vez, podemos compreender o fluxo da correspondência de Machado, suas amizades, amores, relação com a política de seu tempo e preocupações filosóficas”, diz o ensaísta e diplomata Sérgio Paulo Rouanet, da ABL. Rouanet coordena o projeto mais arrojado do centenário de Machado: organizar em ordem cronológica toda a correspondência do escritor, tanto a escrita por ele como a recebida por ele ao longo de 50 anos de vida intelectual. O primeiro volume do trabalho, Correspondência de Machado de Assis, Tomo I (1860-1869) , sairá em outubro. São 90 cartas. O segundo, previsto para 2009, contém oito centenas de cartas e cobre os 40 anos restantes.

O Machado de Assis que emerge dessas cartas é um personagem novo, distante dos estereótipos que nos habituamos a estudar na escola. Trata-se de um dândi, um jornalista e poeta empolgado com a frenética vida social e boêmia do Rio de Janeiro imperial. Ele sai com atrizes de teatro, conta suas aventuras aos amigos, divide confidências e dá conselhos. Num sinal de que estava bem à frente de seu tempo, sugere à noiva a leitura de um compêndio feminista. A um amigo distante, filosofa sobre a podridão do comportamento humano e a vida na cidade. De modo maroto, esquiva-se das ordens dos caciques políticos que chefiam o jornal em que trabalha, o Diário do Rio de Janeiro. Ele é um Machado que, mais que tudo, desce do monumento da academia e vai às ruas, rejuvenescido.

A investigação que descobriu esse novo personagem mundano começou há dois anos, sem outra intenção que ordenar um material desconhecido. Rouanet convidou as pesquisadoras Irene Moutinho e Silvia Eleuterio para sair à cata de cartas em arquivos e bibliotecas. Logo, as surpresas e os textos inéditos começaram a vir à tona – e esse novo Machado, mais jovem e impetuoso, começou a ganhar corpo.

Uma das principais descobertas feitas por Irene está no texto de uma das duas cartas íntimas que restaram de Machado a Carolina, então sua noiva. Elas foram escritas no mesmo dia, 2 de março de 1869, quando Carolina estava em Petrópolis para tomar conta do irmão, o jornalista e poeta – e amigo de Machado – Faustino Xavier de Novaes (1820-1869). Faustino sofria de distúrbios mentais e morreria em agosto. “Machadinho”, como Machado assinava sua correspondência a Carolina, estava aflito por reencontrar a amada. Derramou-se em declarações e elogios a ela, numa letra apressada e nada legível. Perto da conclusão, uma palavra soava estranha a quem se acostumara com uma versão que fora divulgada em 1939, no Catálogo da Exposição do Centenário de Machado de Assis, repetida até hoje. O trecho da carta que embatucou a pesquisadora dizia: “depois... depois, querida, queimaremos o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis”.

O convite de Machadinho para a queimada planetária soava esquisito. “Havia algo de errado”, diz Irene. Acostumada com manuscritos, ela foi à caça dos originais, dados como perdidos. Encontrou o documento no Museu da República, no Rio de Janeiro. As duas cartas foram doadas à instituição pela sobrinha de Machado, Laura Braga da Costa. Irene fez a cópia das cartas e comparou-as com os textos impressos. “Notei discrepâncias e deduzi, pela análise dos garranchos, que tudo apontava para ‘ganharemos’, e não ‘queimaremos’”, afirma Irene. A carta, corrigida, ganhou um novo sentido. Machadinho declara premonitoriamente a sua “Carola”: “...depois, querida, ganharemos o mundo”. “A sensação foi de alívio”, diz Rouanet. “Nosso Machado não era incendiário aos 30 anos, nem fez um convite terrorista a Carolina!”

O desejo de Machado está se cumprindo. Hoje, ele começa a conquistar o mundo. Os simpósios internacionais sobre sua obra, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, atraem a atenção de acadêmicos respeitáveis. Críticos de alta reputação, como os americanos Harold Bloom e Susan Sontag e o inglês John Gledson, elevaram-no ao patamar dos gênios. Em seu livro Gênio, de 2003, Bloom define Machado como “um milagre”, por ter conseguido fugir de sua situação social e histórica para criar uma ficção universal. Seus livros foram traduzidos para 14 idiomas, a maior parte na década passada. Há, nos EUA, um entusiasmo por novas traduções.

A glória mundial de Machado será enriquecida pela redescoberta de suas cartas. Elas contêm mistérios que mostram a complexidade da relação amorosa entre Machado e Carolina. Uma das charadas da primeira carta está no terceiro parágrafo. Ele diz: “Sofreste tanto que até perdeste a consciência do teu império; estás pronta a obedecer; admiras-te de seres obedecida”. Soa cifrado. E as únicas explicações que poderiam elucidar o enigma estariam nas demais cartas íntimas, queimadas após a morte de Machado.

Carolina guardou lembranças em uma cômoda, entre elas o maço de cartas do marido, amarrado por uma fita. Com a morte de Machado, o móvel foi enviado a uma amiga, Fanny de Araújo. Ela o incinerou para manter inviolável a intimidade do casal. As secretas minúcias dos dois teriam sido queimadas. A não ser que se acredite em outra versão, improvável, segundo a qual alguém roubou as cartas enquanto Machado agonizava.

Essas suposições não refrearam a imaginação dos machadianos. Sabe-se que Carolina se mudou do Porto para o Brasil em 1868 para viver com o irmão, Faustino, por causa de um “acontecimento grave”, mencionado pelo Visconde de Sanches de Frias em suas Memórias Literárias (1906). O que teria ocorrido? Possivelmente, uma desilusão ou um escândalo amoroso. Carolina era literata, freqüentadora da vida intelectual do Porto e amiga de vários escritores, entre eles o romancista Camilo Castelo Branco. Depois do suposto escândalo, os pais de Carolina pediram que um amigo da família, o pianista Arthur Napoleão, a levasse para o Brasil. Já era considerada solteirona. Tinha 34 anos quando se casou, em novembro de 1869, com Machado, quatro anos mais moço. Quando a conheceu, apresentado por Faustino, Machado já era um escritor renomado, autor de várias obras, como “Versos a Corina”, poema incluído em seu volume de estréia, Crisálidas (1864). Na primeira carta, ele responde à pergunta de Carolina sobre paixões antigas: “A minha história passada do coração resume-se em dois capítulos: um amor, não correspondido, outro, correspondido. Do primeiro nada tenho que dizer. Do outro não me queixo, fui eu o primeiro a rompê-lo”.

Elegante, bem vestido e culto, o dândi Machadinho gostava de namorar e da companhia dos amigos

Corina seria o primeiro capítulo, codinome da famosa atriz portuguesa Gabriela Augusta da Cunha. O segundo talvez fosse outra atriz, para uns a diva italiana Augusta Candiani, para outros a vedete francesa Aimée, dançarina de cancã do cabaré Alcazar Lyrique. Segundo Joaquim Manuel de Macedo, o local subverteu a moral dos jovens “leões” em 1859, nos 20 anos de Machado. Os nomes das musas são hipotéticos. O fato é que, dos 15 aos 30 anos, Machado foi um entusiasta da vida noturna da Corte. Ainda aprendiz de tipógrafo, dava um jeito de ir aos teatros e bailes e circular pela Rua do Ouvidor, o centro social da cidade. Machado não cabe na imagem do excluído social que alguns estudiosos lhe atribuem. Elegante, bem vestido e dono de uma biblioteca fornida (Ver: http://oswaldoeduardo.blogspot.com/2008/09/estante-do-autor.html), foi boêmio e conquistador, como revela correspondência com os amigos. O irmão de Carolina, Faustino, convoca Machado para um encontro numa carta de 14 de julho de 1865. O tom é severo e divertido: “Machadinho, tenho muita precisão de falar contigo, e, como és um boêmio, incerto em toda a parte, ouso pedir-te que me procures na praça, hoje sem falta”. Quem diria que o fundador da ABL era tão avoado?

O parceiro de farras Sizenando Nabuco (1842-1892), ferrenho republicano e irmão de Joaquim Nabuco, menciona em carta de 4 de abril de 1864 os namoros do amigo comum José Ferreira de Meneses e o “leilão de paixões” de Machadinho: “Este ano já te vi arrematar uma, que deve-te ser um pouco pesada – menos que aquele marido – mais que minhas maçadas. O Meneses... oh! oh! Por quem? Ouviste falar na Maria Lúcia? Pois bem: mimos, amores, caprichos, ataques, beijos... risos, tudo tem havido, até mesmo cenas românticas”. Sizenando e comparsas derramavam nas cartas indiscrições e palavrões, usados como interjeições.

A amizade foi fundamental desde o início da vida de Machado, como revela sua correspondência. É notável como os lados público e privado de sua personalidade se embaralhavam. Os escritores publicavam cartas abertas aos amigos e inimigos, mesmo que o assunto fosse íntimo. Ao poeta José Alexandre Teixeira de Melo (1833-1907), Machado lamentou sua desistência da poesia, em carta de 22 de novembro de 1864 no Diário do Rio de Janeiro. Machado, Melo e Casimiro de Abreu eram amigos e atuaram como poetas na Corte. Em 1860, Melo voltava à cidade natal de Campos dos Goytacazes para trabalhar como médico. Machado imagina que o colega esteja vivendo perto da natureza – e manifesta ódio à vida literária e aos hábitos da cidade: “Ainda hoje, como outrora, como sempre, a alma do poeta precisa de ar e de luz − morre se as não tem, ou, pelo menos, desmaia no caminho. Vê daí que luta, que esforço, que milagre não é conservar a gente o ideal e as ilusões através desta lama podre em que patinha − verdadeiro consolo para os patos, mas tristíssimas agonias para os cisnes. Que cisnes! e que patos!”. O “cisne” urbano usava cartas abertas para satirizar a civilização e discorrer sobre seu tema favorito: o teatro. Em carta ao amigo mais constante, Salvador de Mendonça, em A Reforma, de 1871, analisa os dramas de Shakespeare e o trabalho do ator italiano Ernesto Rossi, em temporada na cidade. Arremata o texto com um dito típico seu: “O alimento do gênio é a glória”.

De acordo com Rouanet, o Machado que emerge da correspondência da juventude é diferente do austero acadêmico: dândi, alegre, irônico e exuberante.

Além do dandismo e do talento estético, Machado tinha habilidade de manter distância das lutas políticas do Império. A qualidade se revelou no fim de 1866, quando Machado assumiu interinamente a direção do Diário do Rio de Janeiro, com a ausência do diretor Saldanha de Marinho (1816-1895) e do redator-chefe, Henrique César Muzzio. Os dois atuavam como governador e secretário de Minas Gerais. A dupla de liberais progressistas insistia em que Machado escrevesse um artigo contra o político Lafaiete Rodrigues Pereira, liberal histórico, que atacava o governo mineiro pelos jornais rivais. Machado demorou para atender ao pedido, pois queria agradar a todas as facções – e, com isso, obter um cargo público. Meses depois, saía do Diário. Interrompia a carreira de colunista político para ser ajudante do diretor do Diário Oficial do Império. “Ele planejou uma vida amorosa e econômica segura, para poder construir sua obra e sua glória”, diz Silvia Eleuterio.

Com a vida estabilizada, Machado ganhou o mundo ao lado de Carolina: cresceu no serviço público, galgou postos e teve sossego para escrever. Seus anos românticos chegaram ao fim. Ao completar 40 anos, ocorreu uma “virada”. Uma conjuntivite o obrigou a tirar licença e viajar para Nova Friburgo, onde escreveu – e ditou a Carolina – o livro com que viria a revolucionar a literatura nacional: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Para John Gledson, é o primeiro grande romance latino-americano, não só pelas inovações da narrativa, como pela densidade com que passou a interpretar a sociedade brasileira.
Ao mesmo tempo, usou a crônica para criticar as oligarquias, a Abolição da Escravatura (que, para ele, não resolvia o problema da população negra) e, veladamente, seu querido monarca. O exercício de cronista o ajudava nas obras de fôlego. Suas crônicas na Gazeta de Notícias, entre abril de 1888 e agosto de 1889, captam o momento de ruína da Monarquia. Também correspondem ao período em que escreveu Quincas Borba. O romance faz uma sátira velada ao rei. “A loucura de Rubião (o personagem) é uma referência alegórica ao desvario de dom Pedro no fim do reinado”, diz Gledson.

A fama de Machado não se fez só com esse tipo de crítica social. Ele foi um leitor de Schopenhauer, pai das doutrinas pessimistas, e de escritores que não se encaixavam na escola naturalista da segunda metade do século XIX. “Ele produziu uma colcha de retalhos de citações e subverteu a narrativa linear da moda”, diz Rouanet. “Fugiu ao cânone naturalista. Ao recuar à ironia crítica do século XVIII, ele se aproximou do ceticismo e do pós-modernismo do XXI. Onde os cientificistas viam a História como seqüência, Machado enxergava o cotidiano absurdo.” Afastou-se da ideologia do progresso, defendida por autores jovens como Euclydes da Cunha. Machado enviou uma carta formal a Euclydes, quando este foi eleito para a Academia (leia o manuscrito inédito ao lado). O documento será publicado em 2009 no segundo volume da correspondência.

De uma forma anacrônica e – por que não? – contemporânea, esse carioca cético, amante do xadrez e das armadilhas narrativas, pôs em xeque os conceitos de progresso e ciência. Suas idéias paradoxais lembram as de agora. O estilo elíptico – tão conciso quanto ardiloso – é um desafio a gerações de decifradores. Fundou um mundo... de palavras.

Machado anteviu em suas crônicas as mutações tecnológicas e sociais que aconteceriam no século XX. Mas morreu sem poder presenciá-las, rewlativamente cedo, aos 69 anos, de câncer na boca. Quando vivo, já posava para a posteridade no quadro de Henrique Bernardelli. Sua casa do Cosme Velho se tornara um local de veneração. Estava cheia de amigos e admiradores na madrugada de 29 de setembro. Suas últimas palavras, sussurradas ao crítico José Veríssimo, poderiam soar irônicas, não ecoassem o Machado bem-humorado da correspondência juvenil: “A vida é boa!”. Sim, a vida foi boa para Machado de Assis. A posteridade, ainda melhor.

Luis Antônio Giron
Revista Época. Edição 541 - 29/09/2008

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