segunda-feira, 1 de setembro de 2008

A história das mulheres que atravessaram o Atlântico




Entrevista com Diego Bracco, autor do livro María de Sanabria e doutor em História pela Universidade de Sevilha.


“María de Sanabria” (editora Record, 272 pág., R$ 39,00)

Histórias das navegações, sobre homens atravessando mares em direção a terras desconhecidas, são quase sempre atribuídas a Cristovão Colombo, Pedro Álvares Cabral e Américo Vespúcio. É quase impossível encontrar relatos de mulheres que atravessaram oceanos em busca de um mundo a ser conquistado. Talvez seja esta a maior inspiração de Diego Bracco, autor de um livro que quer tornar conhecida uma expedição comandada por mulheres espanholas, tendo como líder María de Sanabria. Cerca de 100 delas, em 10 de abril de 1550, embarcaram em três pequenos navios para passar quase um ano em alto mar, pelo Atlântico, com o objetivo de chegar na América. Elas queriam evitar que os espanhóis – que se encontravam por aqui – começassem a se procriar com as índias. “A coroa temia que, com a grande quantidade de mestiços, a classe espanhola, pura, se perdesse e, assim, não conseguisse dominar o território”, afirma Bracco.

Mas a autorização por parte da corte – de uma viagem tão arriscada – também é explicada por um outro grande motivo: a herança deixada pelo pai de María de Sanabria, Juan de Sanabria. Era ele quem deveria vir para a América, porque iria assumir o governo de Assunção, no Paraguai, que havia acabado de depor o famoso Cabeza de Vaca do poder. Mas Juan morreu pouco antes de partir para a missão.

Álvar Nuñez Cabeza de Vaca foi designado governador do Rio da Prata. Chegou a Assunção do Paraguai depois de uma grande viagem. Mas suas tentativas de limitar os abusos dos europeus contra as mulheres indígenas parecem ter influenciado na criação do movimento que acabou tirando-o do poder. Sem Cabeza de Vaca e com a morte de Juan de Sanabria, quem deveria assumir o governo era um homem: o meio-irmão de María de Sanabria, mas não se sabe porque ele não veio na expedição. Por isso, as mulheres Sanabria chegaram a Assunção para assumir o poder em nome do pai já morto. A travessia do Oceano Atlântico é um pouco romantizada, por falta de documentos que expliquem os detalhes da viagem e de como estas mulheres enfrentaram as enfermidades e os piratas. Sabe-se que, entretanto, graças a elas a coroa da Espanha conseguiu evitar que o domínio do território fosse tomado por algum mestiço.

Na última segunda-feira, Diego Bracco esteve no Brasil, a convite das Livrarias Curitiba, para lançar o livro María de Sanabria. Na conversa com a Gazeta do Povo, ele se deteve a contar a viagem das mulheres e a chegada delas ao Brasil. “A vida na costa brasileira deve ser assunto para ser tratado em um segundo livro”, anuncia Bracco. As respostas a seguir são fundamentadas em pesquisas feitas pelo historiador. Tudo o que não é documentado, ele tentou deixar o mais próximo da realidade da época. Pouco se fala da lendária travessia.

Há documentos que comprovem que a expedição realmente aconteceu?

Existem basicamente quatro documentos, com informações não muito detalhadas. Sabe-se que as circunstâncias históricas são incomuns. O Cabeza de Vaca tinha sido derrubado do governo do Rio da Prata, mas ninguém teve coragem de assassiná-lo. Mandaram ele acorrentado para a Espanha. Mesmo que a coroa acreditasse na versão de Cabeza de Vaca, era impossível lhe repor no governo, enviá-lo novamente ao Rio da Prata para confrontar os outros espanhóis que lá estavam, a 10 mil quilômetros de um território pouco conhecido. Também não há relatos de como ele morreu.

Como foi a decisão de nomear o novo governo?

A coroa decidiu dar o poder a um nobre de muita importância, primo de Hernan Cortez (conquistador do México), chamado Juan de Sanabria, pai de María de Sanabria. Dizia-se que ele fez um contrato de muitos capítulos com a monarquia, para assumir o governo do Rio da Prata. Mas ele morreu logo depois de assinar o documento, por isso o filho dele seria o herdeiro do poder. O rapaz é conhecido como meio-irmão de María de Sanabria, mas não se sabe porque ele nunca veio ao Rio da Prata. Juan de Sanabria tinha três filhas e deixou a mulher, Mencía Calderón, viúva. Foram elas que assumiram a herança e decidiram fazer a travessia.

Mas a missão delas não era evitar que os espanhóis se procriassem com as mulheres indígenas?

Isto é uma verdade também, além da missão referente ao contrato deixado por Juan de Sanabria. A pergunta é: por que a coroa autorizou uma expedição tão incomum para a época? No interior do Rio da Prata, os documentos encontrados chamavam o local de Paraíso de Maomé. No Alcorão (livro sagrado do islamismo), há registro de 72 mulheres para cada homem que mereça as graças de Alá. No Paraguai, era o que estava acontecendo. Espanhóis tinham, cada um, cerca de 80 a 100 mulheres indígenas. A coroa temia que, com a grande quantidade de mestiços, a classe dominante perdesse o território. Foi o que fez com que a coroa autorizasse a partida das 100 mulheres espanholas, que deveriam se casar com estes homens que estavam dominando a América.

Deu certo?

Sim. Algumas mulheres ficaram na costa brasileira e se casaram. Uma grande prova é que María de Sanabria teve dois filhos, que foram duas grandes figuras dos séculos 16 e 17. É possível que a idéia da coroa, de classe dominante, tenha sido obtida. O filho do primeiro casamento de María de Sanabria, batizado de Hernando, se tornou franciscano, foi um dos grandes protagonistas da vida religiosa do Rio da Prata e fundador da Universidade de Córdoba. O segundo filho, de uma provável relação extra-conjugal, também se chamava Hernando, mas ficou conhecido como Hernandarias, da junção Hernando Arias. Ele foi três vezes governador do Rio da Prata.

María de Sanabria se casou mais de uma vez?

Sim. Ela perdeu o primeiro marido quando este foi preso logo que chegaram a Assunção, seis anos depois dela ter partido da Espanha. O nome dele era Hernando de Trejo, que morreu em data próxima à morte do também governador do Paraguai na época. Ele deveria ser um homem generoso, porque deixou herança para María desfrutar na Espanha. Ela decidiu ficar por mais um tempo e se casou novamente. Ainda não é certo, mas ela engravidou do segundo filho três anos antes de casar pela segunda vez.

Por que cerca de 100 mulheres decidiram vir para a América? Elas estavam fugindo de algo? Tinham idéia do que iriam passar?

É muito possível que seriam diversos tipos de gente. Apesar de a embarcação ser comandada por mulheres, existiam homens também. Deveriam ser pessoas que estavam tentando a própria sorte, que queriam mudar de vida. Imagino que as mulheres fugiam de coisas que elas temiam na época: como o seu próprio passado, a inquisição, de ter um nome ruim e não ter um bom dote para se casar. Importante lembrar, porém, que a Espanha nesta época também foi o país que permitiu a melhor situação para as mulheres que sofriam com o preconceito de gênero. Com a saída dos homens para conquistar a América, elas cuidaram da propriedade e do dinheiro. Algumas fizeram opção religiosa, como Santa Teresa de Ávila, que é bem conhecida.

Como eram as três embarcações que trouxeram estas mulheres? O que elas tiveram de enfrentar durante a travessia?

É inacreditável para nós. As embarcações da época eram muito pequenas, como um barco de pescaria, e carregavam muita gente. Tinham 25 metros de comprimento. Faltava água e a comida era escassa – foi pior do que a viagem da família real portuguesa. Estas mulheres passaram fome, ficaram doentes. Por isso, metade delas morreu no caminho, provavelmente a terceira irmã de María de Sanabria também não resistiu. Um documento que relata o que Mencía Sanabria (mãe de María) perdeu durante as viagens é prova de que elas foram saqueadas por piratas, no Golfo da Guiné.

Onde elas desembarcaram?

Foi na ilha de Santa Catarina, atual Florianópolis. Algumas ficaram por lá, outras seguiram para São Paulo e houve um grupo que seguiu com María de Sanabria rumo ao Paraguai, não se sabe quantas eram. É provável que elas tenham feito o mesmo caminho que Cabeza de Vaca fez, passando pelo Paraná nas trilhas do Caminho do Peabiru, com orientação dos índios tupis-guaranis. Elas descansaram da viagem na antiga região das Sete Quedas.

Pollianna Milan
Gazeta do Povo, Curitiba

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