Chinelada no 'Aranha Negra': Mané Garrincha estréia no Mundial e solta a bomba contra a meta do soviético Yashin
Mané Garrincha, o alquimista das fintas, conseguiu o queninguém acreditava ser possível: fazer a torcida da casa torcer peloBrasil. O arisco ponteiro deu um banho nos zagueiros
O grande xodó da torcida sueca na Copa foi um brasileiro de pernas tortas e fintas mágicas: Mané Garrincha, o principal artista do certame. Menos escandinavo que ele, impossível - descendente de índios, mirrado, galhofeiro e nada profissional, o ponta-direita do Botafogo é tudo o que os anfitriões da Copa não estão acostumados a ver num estádio de futebol. Ao contrário dos discípulos da escola sueca, pragmática e sem rodeios, Garrincha tem um estilo de jogo esfuziante. Sua forma de atuar é marcada por uma verdadeira obsessão: o drible. Na cabeça do ponteiro, o objetivo do jogo é entortar, desmoralizar e desorientar o maior número possível de adversários. Se os dribles o levarem à linha de fundo, ótimo: Garrincha procura um avante na grande área e presenteia o colega com o esférico. Se o caminho das fintas o conduzir até o gol, ainda melhor - o craque tem um canhão no pé direito e também costuma guardar seus tentos (ainda que na Copa não tenha marcado nenhum). Garrincha participou de quatro partidas do Mundial. Desde que entrou, transformou a feição do jogo do Brasil e o destino da seleção no torneio.
Revelado pelo Botafogo em 1953, Garrincha, de 24 anos, já fazia a alegria da torcida no Rio de Janeiro havia tempos. Defendendo a seleção, entretanto, ele jamais tinha conseguido ser o mesmo ponteiro contundente e endiabrado que se apresentava pelo clube. Em função disso, seu nome não aparecia na lista dos mais cotados para disputar a Copa no início deste ano. O titular mais freqüente vinha sendo Joel, do Flamengo. E ainda havia Julinho, da Fiorentina, o maior ponta-direita brasileiro (pelo menos até a participação de Garrincha no Mundial). É um fato raro a CBD convocar à seleção atletas que militam em clubes do exterior. Mas Julinho era exceção à regra - seria, se tudo corresse dentro do previsto, o titular absoluto da posição na Suécia. Em carta enviada à confederação, o atleta, um rapaz de caráter exemplar, agradeceu pelo convite, mas rejeitou a chamada. Para o craque, seria uma injustiça roubar o doce da boca de outro ponteiro em atividade no país, tirando a vaga de alguém que vinha participando de toda a preparação bem na hora de disputar a Copa do Mundo. E foi assim, como uma segunda opção, que Garrincha foi parar na Suécia.
Trupe malabarista
Matreiro, descompromissado e sem apreço algum pelas estratégias, Garrincha não participou das duas primeiras partidas da seleção. A comissão técnica temia que ele não seguisse orientação nenhuma e acabasse prejudicando a dinâmica do resto da equipe. Contra a Áustria, por exemplo, era necessário que nosso ponta-direita ajudasse na marcação. Que ninguém esperasse isso de Garrincha. O disciplinado Joel cumpriu o papel direitinho - idem contra os ingleses. Mas no terceiro jogo, contra os russos, chegava a hora de surpreender e chocar os oponentes. A seleção começou a partida com uma ordem expressa do técnico Vicente Feola: a bola devia ser entregue a Garrincha, o novo titular, que trataria de assustar os soviéticos com seu ritmo frenético. Deu certo: os rivais bateram cabeça e, de quebra, os bailados de Garrincha ainda conquistaram a simpatia da torcida local.
Seria assim até o final. A imprensa da Suécia passou a anunciar as partidas seguintes do Brasil como se fossem espetáculos de uma trupe de malabaristas, com o abusado Mané Garrincha à frente. Quando ele recebia a bola, o estádio todo congelava na expectativa do drible. Depois, com os zagueiros batidos e atordoados, a torcida ria e aplaudia efusivamente. A contribuição de Garrincha, no entanto, não ficou restrita a esses momentos de diversão. É justo dizer que, sem o ponta-direita, a taça poderia ter escapado das mãos dos brasileiros. Na final, Garrincha só não fez chover porque Estocolmo já fora castigada por um temporal na manhã da partida. Depois que a Suécia abriu o placar, Garrincha fez duas vezes a mesma jogada: atropelou três defensores, foi à linha de fundo e cruzou para Vavá. Dois gols quase idênticos, virada brasileira. Os lances ainda convenceram boa parte da torcida sueca a trocar de lado e vibrar com o selecionado visitante. Só mesmo um mágico para tirar da cartola um truque tão improvável.
Edição Extra: PERFIL
VEJA, junho de 1958
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