domingo, 29 de junho de 2008

O dia em que Bellini levantou a Taça do Mundo

"Levanta a Taça, Bellini! Levanta! Levanta!". Eram os gritos de repórteres, fotógrafos, jogadores e membros da nossa delegação no Mundial da Suécia, em 1958, pedindo ao capitão da Seleção Brasileira que levantasse a Taça do Mundo, para que todos pudessem vê-la e admirá-la. Vestindo camisa azul, em vez da amarela, Bellini ergueu o cobiçado troféu, num gesto que seria imitado, daí por diante, por atletas campeões ou recordistas, seja em Copas do Mundo ou Jogos Olímpicos.

" Era o fim de uma jornada de glórias, a mais bela e a mais heróica página da história do futebol brasileiro "

Era o fim de uma jornada de glórias, a mais bela e a mais heróica página da história do futebol brasileiro. O dia: 29 de junho de 1958, dia de São Pedro, um domingo frio, nublado e chuvoso no Estádio Solna Raasunda, em Estocolmo, capital da Suécia. O Brasil conquistava pela primeira vez um título mundial de futebol.

Tudo aconteceu há 50 anos. Vou contar um pouco da história, da qual participei como um jovem e anônimo torcedor, em São Paulo. Parodiando o poeta, posso dizer a todos: "meninos eu ouvi...". A Copa do Mundo não era transmitida pela TV. A gente ouvia pelo rádio. E a narração épica, de insuperáveis locutores, ora aumentava de volume, ficando clara, ora diminuía, quase sumindo, deixando milhões de brasileiros nervosos.

E a Seleção? Deus do céu! E o som aumentando, vindo lá da distante Escandinávia, voltava a entusiasmar a torcida. Daí a pouco, ia sumindo. Era um belo domingo de sol na maior parte do Brasil. Todos acreditavam naquela seleção de jovens que jogavam com honra, lealdade e amor à camisa. Nilton Santos era o mais velho, com 33 anos de idade.

Como era o Brasil naquele inesquecível 1958? Quem é jovem não imagina. "Vai minha tristeza/ E diz a ela que sem ela não pode ser/ Diz-lhe numa prece/ Que ela regresse/ Porque eu não posso mais sofrer/ Chega de saudade/ A realidade é que sem ela/ Não há paz não há beleza/ É só tristeza e a melancolia/ Que não sai de mim/ Não sai de mim/ Não sai". Nascia a Bossa Nova. E, com ela, a primorosa canção "Chega de saudade", com uma verdadeira seleção da música brasileira: letra-poesia de Vinícius de Moraes, belo e doce arranjo de Antônio Carlos Jobim, batida revolucionária do violão de João Gilberto e a voz da divina Elizeth Cardoso. "Não quero mais esse negócio/ De você longe de mim/ Vamos deixar esse negócio/ De você viver sem mim."

" A Taça representava a deusa Vitória alada com as mãos sobre a cabeça, segurando um vaso octogonal em forma de copa "

Afinal, é Copa ou Taça do Mundo? A taça, na verdade, nasceu como copa. Era chamada, nos anos 30, de "Coupe de Monde", moldada pelo artesão Abel Lafleur, da Joalheria Cristofle, de Paris. Depois, passou a ser "Coupe Jules Rimet", em homenagem ao primeiro presidente da FIFA. Custou uma fortuna na época: 50 mil francos franceses. A taça, que ficou definitivamente com o Brasil com a conquista de três campeonatos, em 1958, 62 e 70, foi roubada da sede da CBD, em 1983, e derretida por criminosos sem compromisso com a cultura e a história. Uma empresa fotográfica mandou fazer uma réplica, em 84, com os moldes originais da Copa, encontrados numa cidadã alemã. Quem não se lembra dela? Representava a deusa Vitória alada com as mãos sobre a cabeça, segurando um vaso octogonal em forma de copa. Pesava quatro quilos, sendo um quilo e oitocentos gramas de ouro puro e uma base de mármore de trinta centímetros de altura.

Na véspera do jogo final da Copa do Mundo, o nervosismo tomou conta do comando da Seleção Brasileira. Os suecos venceram no sorteio e não abriram mão de jogar com camisas amarelas. O Brasil teria que jogar com camisas de outra cor. Os dirigentes se dirigiram ao doutor Paulo Machado de Carvalho, chefe da delegação, para comunicar o fato. "Comprem as melhores camisas azuis que encontrarem", ordenou ele. Um jogo de uniformes completo foi comprado, mas sem numeração. O massagista Mário Américo e o roupeiro Francisco Assis Santos passariam a noite e a madrugada do domingo costurando números avulsos, camisa por camisa.

1958. Tempos de JK, o presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira, construtor de Brasília. Seu sobrenome de origem tcheca - Kubitschek - logo se popularizou. Sob seu governo o Brasil foi marcado por grande desenvolvimento econômico e industrialização crescente, com o Plano de Metas que estabelecia 31 objetivos para serem cumpridos durante o mandato. O sonho maior de Juscelino era dar ao Brasil 50 anos de progresso em apenas cinco de governo. Ele passou à História mais por fazer um governo democrático, sem ódios ou rancores.

Na camisa de mangas compridas do goleiro Gilmar foi costurado o número 3. Na de Garrincha o número 11, em vez do 7, do ponta-direito. Na camisa de Zagalo, ponta-esquerdo, foi estampado o número 7. Por que essa numeração estranha, que veio desde o início da Copa? Meses antes, a FIFA realizou, em Paris, uma reunião para acertar detalhes do campeonato. Um deles foi a numeração da camisa de cada jogador. O Brasil não mandou representante e o delegado do Uruguai ficou com a responsabilidade de nos representar. E ele deu números ao acaso às camisas, pois não sabia, por exemplo, se Gilmar era goleiro, zagueiro ou atacante.

" 'Vamos jogar de azul. Eu mandei comprar essas camisas azuis como a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida!' "

Um esporte de elite fazia sucesso naquele ano. Maria Ester Bueno, a maior tenista brasileira da História, começou a carreira de glórias internacional ao vencer o torneio de duplas de Wimbledon, ao lado de Althea Gibson, dos Estados Unidos. Eder Jofre, o maior dos nossos boxeadores, também despontou para a fama. Ele empatou uma luta entre pesos-galo com o uruguaio Ruben Cáceres, em Montevidéu. O pentacampeão mundial de automobilismo, Juan Manuel Fangio, da Argentina, deu adeus às pistas, com um quarto lugar no Grande Prêmio da França. No mesmo ano, Fangio não havia disputado o Grande Prêmio de Cuba. Antes da corrida, foi seqüestrado por um comando guerrilheiro do Movimento 26 de Julho, de Fidel Castro.

No dia do jogo, no vestiário do Brasil, quase na hora da entrada em campo, as camisas foram entregues aos jogadores. Eles estranharam a cor do uniforme. Paulo Machado de Carvalho esclareceu: "vamos jogar de azul. Eu mandei comprar essas camisas azuis como a cor do manto de Nossa Senhora Aparecida! Ela, que nos protegeu até aqui, vai nos proteger mais ainda! Vamos ganhar!". Os jogadores, que tinham o dirigente como um pai, aplaudiram e se benzeram. O doutor Paulo trajava o mesmo terno marrom do jogo de estréia na Copa contra a Áustria, 21 dias antes, em 8 de junho, no Estádio Rimervallen, em Uddevalla.

Eram tempos de rock n'roll, com Elvis Presley conquistando o mundo, e de versões brasileiras, uma delas cantada por Nora Ney. O letrista Miguel Gustavo fez a letra de "Rock n'roll em Copacabana", para Cauby Peixoto, o mais famoso cantor da época: "Revira o corpo/ estica o braço/ encolhe a perna e joga para o ar.../ Eu quero ver qual é o primeiro que essa dança vai alucinar.../ E continua a garotada na calçada a se desabafar.../ Eu vou cantando/ até agora não parei nem para respirar". O rock foi um fracasso. Miguel Gustavo jogou a letra do rock no baú e, 12 anos depois, na conquista do tricampeonato mundial, mudou os versos e criou com a melodia o "Pra frente Brasil". "Noventa milhões em ação/ pra frente Brasil/ do meu coração/ Todos juntos vamos/ pra frente Brasil/ salve a Seleção...".

Antes do jogo, no Estádio Solna Raasunda, os suecos continuaram a mostrar como se realizava bem um campeonato mundial. Funcionários colocaram grandes pedaços de espuma de borracha em poças d'água, para enxugar o gramado. As seleções entraram em campo, com Djalma Santos no lugar de De Sordi, na zaga direita brasileira. O titular se machucou no jogo contra a França e não se recuperou. Para chegar à final os brasileiros passaram por cinco difíceis adversários: Áustria (3 a 0), Inglaterra (0 a 0), União Soviética (2 a 0), País de Gales (1 a 0) e França (5 a 2). Os suecos marcaram logo no início do jogo, arbitrado pelo francês Maurice Guigue. Liedholm fez um a zero aos 4 minutos.

" Assistimos à Copa cantando e nos encantando com tanta poesia e musicalidade "

Menos de um ano antes da Copa, uma jovem compositora, Dolores Duran, ouviu Tom Jobim tocar ao piano uma bela melodia, com letra de Vinícius de Moraes. Ela pensou, pediu lápis e papel, e escreveu uma nova letra. Tom gostou dos versos e os mostrou a Vinícius. "Prefiro a letra dessa menina, a Dolores", respondeu o poeta com sua humilde genialidade. "Ah! Você está vendo só / Do jeito que eu fiquei/ E que tudo ficou/ Uma tristeza tão grande/ Nas coisas mais simples/ Que você tocou/ A nossa casa querida/ Já estava acostumada/ Guardando você/ As flores na janela/ Sorriam, cantavam/ Por causa de você". Assistimos à Copa cantando e nos encantando com tanta poesia e musicalidade. Menos de um ano depois do Mundial, Dolores Duran chegou em casa ao amanhecer e pediu para não ser acordada. "Vou dormir até morrer", disse. E Dolores morreu.

Braga Júnior, locutor da Copa de 58 ainda bem vivo e com muita saúde, em São Paulo, narrou pela Rádio Record, de São Paulo, em cadeia com a Rádio Globo, do Rio, o gol de empate do Brasil contra a Suécia, aos 8 minutos de jogo: "... o Brasil está perdendo por 1 a 0 para a seleção da Suécia. Vai para o ataque o time brasileiro. Garrincha é lançado. Domina Garrincha, chama Axbom, passa pela primeira vez, joga para a direita, joga o corpo para a esquerda. Saiu-se muito bem. Passa para a frente. Vai para a linha de fundo, vai se aproximando da linha de fundo. Atenção. Cruzou. Entra Vavá. Atira e... é gol! Goool da Seleção Brasileira! Está empatada a partida na Suécia...".

Em depoimento ao blog "História do futebol", Braga Júnior falou das dificuldades da irradiação: "Não havia transmissão por satélite, como hoje. A irradiação de longa distância era feita por meio de um transmissor enorme, o SSB, com duas bandas de áudio. Um som chegava mais ou menos ao Brasil. O outro chegava de forma sofrível".

A televisão se popularizava, mas ainda era só sonho de consumo da maioria da população. Os tempos eram do bambolê, do macarrão instantâneo, da lambreta, de gírias como "boa prá cachorro" (mulher bonita e sensual), "bom às pampas" (negócio legal), "boca de siri" (silêncio, segredo) e "mixuruca" (coisa de pouco valor). Uma seca brutal assolou o Nordeste, levando milhares de pessoas a deixarem a terra em busca de sobrevivência. Os destinos eram Brasília e São Paulo. A capital paulista cada vez mais agigantada assumiu o slogan "São Paulo não pode parar". Deu no que deu décadas depois...

" Garrincha dava dribles desconcertantes e fazia uma dobradinha fantástica com Djalma Santos "
O Brasil passou a dar um show de bola nos suecos. Aos 32 minutos, Vavá desempatou: Brasil 2 a 1. Garrincha dava dribles desconcertantes e fazia uma dobradinha fantástica com Djalma Santos, o zagueiro-direito. Só Djalma conseguia lançar com as mãos uma bola da lateral do campo até a pequena área adversária (alguém fez igual a ele?). Essa jogada era meio escanteio. O menino Pelé, de 17 anos, fazia diabruras no ataque, junto com Vavá. A zaga brasileira era um paredão. No segundo tempo, Pelé fez 3 a 1, aos 11 minutos. Os suecos temiam o Brasil.

Outro privilégio daquele charmoso ano 58: ler nos jornais, diariamente, autores de textos magníficos. Eram escritores, poetas e jornalistas. Não temos, hoje em dia, a satisfação de ler tantos gênios no café da manhã. Mestres na crônica, um gênero literário feito para o jornal, como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Érico Veríssimo, Guilherme de Almeida, Mário Quintana, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Querem mais? Ainda na agitação cultural, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari divulgavam a poesia concretista, sob a inspiração do poeta americano Ezra Pound, na revista "Noigrandes". E o que é "Noigrandes", palavra criada por Pound? Não quer dizer nada. Um poema de Haroldo de Campos mostra o jogo verbal e o despojamento do concretismo: "De sol a sol/ soldado/ de sal a sal/ salgado/ de sova a sova/ sovado/ de suco a suco/ sugado/ de sono a sono/ sonado/ sangrado/ de sangue a sangue".

No tempo final do jogo, os brasileiros marcaram mais uma vez contra os suecos: 4 a 1. Gol de Zagallo aos 23 minutos. Mas Simonsson diminuiu aos 35 minutos. Brasil 4 a 2. O jogo era fácil para nós. Um carnaval fora de época agitava as ruas brasileiras. Amigos e famílias se confraternizavam. O primeiro título mundial do futebol brasileiro estava perto de ser conquistado. Todos se esqueciam do desastre de 1950, quando perdemos a Copa para o Uruguai em pleno Maracanã, e da vexaminosa campanha de 1954, em gramados da Suíça, quando saímos logo no início da disputa.

" No gramado do Estádio Solna Raasunda, o jogo caminhava para o final, com os deuses do futebol aplaudindo os craques brasileiros "

"Penso che un sogno così non ritorni mai più". Uma canção conquistou a Itália, o Brasil e o mundo, em 58: "Volare", de Domenico Modugno. "Voar oh oh/ cantar oh oh/ no azul pintado de azul" ("Volare oh oh/ cantare oh oh/ nel blu dipinto di blu"). No ano do campeonato, todo mundo assobiava pelas ruas a "Marcha do coronel Bogey", do filme "A ponte do Rio Kway". O escritor russo Boris Pasternak rompia a censura soviética e publicava seu romance épico "Doutor Jivago", ganhando o Prêmio Nobel de Literatura. Pasternak narra a história de um médico e poeta que, depois de apoiar a Revolução Russa de 1917, se desilude com o socialismo e fica dividido entre dois amores: a esposa Tânia e a jovem Lara, de família pobre.

No gramado do Estádio Solna Raasunda, o jogo caminhava para o final, com os deuses do futebol aplaudindo os craques brasileiros. O goleiro Svensson e os zagueiros Bergmark, Axbom, Borjesson e Gustavsson assistiam, impotentes, ao verdadeiro balé do ataque do Brasil. Aos 44 minutos, Pelé, que já assombrava o mundo com seus dribles, passes e arranques geniais, fazia o quinto gol brasileiro. Era demais... O locutor Geraldo José de Almeida berrava no microfone da Rádio Pan-Americana, de São Paulo: "... Que bola, bola, bola! Olha lá, olha, olha lá, olha lá no placar! Brasil 5 a 2!". Depois que o rei Gustavo, da Suécia, entregou a Taça do Mundo a Bellini, o dentista Mário Trigo, da Seleção, quebrou o protocolo e bateu no ombro do soberano: "Hello king! Hello king! Brasil! Brasil!...". O rei sorriu diante de tamanha felicidade.

A campanha de 1958 em campos da Suécia, que levou pela primeira vez o Brasil ao capítulo dos vencedores da história da Taça do Mundo, foi - repito com mais adjetivos - bela, romântica, épica e heróica. O filme "Carruagens de fogo", de 1981, dirigido por Hugh Hudson, que mostra o duelo de dois atletas britânicos que vão disputar a mesma prova nos Jogos Olímpicos de 1924, passa bem a idéia da obstinação de atletas na luta pela glória. Foi algo assim igual o que aconteceu naquele 29 de junho, no gramado do Estádio Solna Raasunda. Durante muito tempo todos cantariam no Brasil: "A Copa do Mundo é nossa / com brasileiro não há quem possa / o brasileiro lá no estrangeiro / mostrou como é que é / ganhou a Copa do Mundo / brincando com a bola no pé...".

Eloy dos Santos, jornalista

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