sábado, 28 de junho de 2008

Os heróis de uma nação

Retrato de um país inteiro: o escrete campeão na Suécia reunia paulistas, cariocas, alagoanos, gaúchos, mineiros..


Um arqueiro confiável, uma defesa valente, ummeio-campo criativo e um ataque explosivo. No banco, um treinador queconhece do riscado. Eis a receita de um escrete campeão

Trinta e cinco homens representaram o Brasil na Copa do Mundo da Suécia. Do chefe da delegação ao roupeiro, dos goleiros aos atacantes, todos honraram as cores do país. Como recompensa, entraram para a história e ganharam uma vaga cativa no coração da torcida. A delegação que retornará da Europa no próximo dia 2 de julho (e que será homenageada em desfiles e cerimônias em Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo) pode ser considerada um retrato bem-acabado do Brasil. Tem o doutor Paulo Machado de Carvalho, um magnata das comunicações, mas também o folclórico massagista Mário Américo, um sujeito simples e folgazão; o supervisor Carlos Nascimento, homem severo e às vezes arredio, e o dentista Mário Trigo, comediante nas horas vagas. Entre os atletas, há brancos, negros e pardos; há paulistas, cariocas, alagoanos, gaúchos e mineiros. Os zagueiros têm sobrenome de italiano, mas Garrincha descende de índios. Nos surtos mais agudos do nosso complexo de vira-latas, essa mistura chegou a ser apontada como razão dos fracassos da seleção. Alguns cronistas abraçavam conceitos racistas e diziam que o time, de forte miscigenação, tinha um eterno e inevitável espírito de perdedor. O sucesso na Suécia comprova que nossa rica variedade de talentos é, na verdade, uma fórmula para a vitória. A seguir estão algumas dessas histórias de sucesso.


O segredo do cofre

Gilmar: liderança, firmeza e personalidade debaixo dos paus

Goleiro menos vazado do certame, GILMAR, de 27 anos, ganhou seu lugar no time titular por transmitir segurança a todos os setores da equipe. Além de fazer defesas estupendas, é um dos líderes do grupo. O quíper do Corinthians nasceu em Santos e chegou ao futebol da capital paulista meio que por acaso, como contrapeso na negociação de um obscuro meia do Jabaquara. Acabou conquistando três títulos paulistas. Na Suécia, segurou um rojão: assim como já ocorrera com Barbosa, injustamente apontado como o vilão da derrota em 1950, corria o risco de amargar sozinho a culpa por um possível revés na Copa. Que nada. Gilmar foi o fiador da vitória, agarrando todas debaixo dos paus.


Xerifes da grande área

A defesa brasileira passou incólume pelos quatro primeiros jogos da Copa. Mérito da dupla formada por BELLINI, o zagueiro central, e DE SORDI, o lateral-direito. Quem ouvia os dois nomes nos alto-falantes dos estádios suecos achava que a zaga da Itália tinha entrado no campo com o time errado. Mas Bellini, de 28 anos, e De Sordi, de 27, são do interior de São Paulo, onde começaram suas carreiras. O primeiro, hoje no Vasco da Gama, é um líder nato. Com uma ascendência natural entre os companheiros, mereceu a honra de ser o capitão e, na final, levantar a taça Jules Rimet - foi o primeiro brasileiro a tocá-la. De Sordi, atleta do São Paulo, marcador determinado e valente, não teve a mesma sorte: contundiu-se na semifinal e não pôde jogar a decisão. Depois de cinco jogos esplêndidos, não apareceu na foto do time campeão (em seu lugar entrou Djalma Santos, da Portuguesa).


Repertório refinado

Disparando para o ataque: Nilton Santos prepara o arremate e marca contra a Áustria
Desafia-se a torcida a encontrar, em qualquer parte do globo, um defensor que trate tão bem a bola quanto NILTON SANTOS, o lateral-esquerdo da seleção. A classe e a fineza deste atleta de 33 anos, titular do Botafogo há dez, são singulares. O fenômeno tem explicação: o craque começou a carreira como atacante, cujos grandes prazeres eram driblar e marcar gols. Como seu repertório é completo - afinal, também é capaz de marcar e armar o jogo -, já se apresentou nas mais diversas funções. Nilton tem uma característica ímpar para um lateral. Ao invés de se limitar a defender o flanco e conter o ponta adversário, parte para o ataque como se ele próprio fosse um ponteiro quando consegue roubar a bola. Alguns técnicos são levados ao desespero pelo seu estilo - como Flávio Costa, que o manteve no banco na Copa de 1950. Em 1954, já era titular. Numa de suas arrancadas, Nilton Santos marcou o segundo gol da seleção na Copa da Suécia. Quando percebeu que o lateral disparava para o ataque, o técnico saltou do banco e implorou para que voltasse. Tarde demais: o lateral que também é artilheiro já tinha guardado a bola na rede. Restou a Feola aplaudir a ousadia.


O pelotão de elite

O maestro Didi: categoria e 'folha-seca'

Se fossem integrantes de um regimento militar, ZITO e DIDI seriam a dupla responsável pelo funcionamento dos canhões - o primeiro traz a munição, o segundo efetua os disparos. Zito, 31 anos, médio-volante do Santos, é mestre em cercar o adversário, tomar-lhe a bola e entregar o balão aos armadores. Já Didi, 28 anos, grande maestro do time do Botafogo, é o encarregado de fazer funcionar todo o ataque. É dele que partem os lançamentos precisos para Garrincha, Pelé e Vavá - ou, quando a defesa vacila, os tiros de longa distância contra a meta adversária. Dono de um chute inimitável, a fantástica "folha seca", Didi foi o cérebro da seleção durante toda a aventura sueca. Zito, que entrou apenas no terceiro jogo, contra a União Soviética, tornou-se o ponto de equilíbrio da equipe - nosso futebol cresceu tanto que ele agarrou de vez a camisa titular.


Operários do gol

O trabalho podia parecer fácil: empurrar para o fundo das redes as bolas que chegavam após as tramas geniais costuradas por Didi, Pelé e Garrincha. Mas a missão dos avantes VAVÁ e MAZZOLA estava longe de ser um passeio no parque. Na Copa, os avançados brasileiros depararam-se com zagueiros de espantosa força física (além de modos nada delicados). Eles eram verdadeiros touros, e exigia-se coragem de quem fosse enfrentá-los. Mazzola, 19 anos, jogador do Palmeiras, começou o Mundial como titular. Marcou duas vezes logo na estréia, contra a Áustria. Mas os rumores de que estaria negociando uma transferência para o futebol da Itália irritaram a comissão técnica, que o colocou na geladeira depois das várias chances de gol perdidas no jogo contra a Inglaterra. Nas quartas-de-final, contra os galeses, Mazzola ganhou nova chance e não decepcionou. Mas o grande artilheiro da seleção na Suécia foi o vascaíno Vavá, de 23 anos. Destemido e brigador, fez frente aos gigantes europeus e marcou cinco gols - incluindo os dois da vitória contra os soviéticos e outros dois tentos na final. É justa uma menção honrosa a ZAGALO, de 26 anos, ponta-esquerda do Flamengo. Titular do escrete do primeiro ao último minuto da Copa, fez um trabalho de formiguinha, recuando à meia-cancha para ajudar na marcação e dar mais liberdade aos artistas do ataque. Ainda foi premiado com um gol na final, seu único no certame.


Ele não dorme no ponto

O rotundo Feola: sempre acordado

Impassível e bonachão (mas profundo conhecedor de bola), VICENTE ÍTALO FEOLA foi uma escolha inesperada para o comando técnico da seleção na Copa do Mundo. Ele havia largado a função de treinador em seu time, o São Paulo, por sofrer de problemas cardíacos - o gorducho comandante, 48 anos e mais de 100 quilos, fora promovido a supervisor do clube (com o cargo de técnico de campo entregue ao húngaro Bela Gutman). Feola conduziu sua equipe com discrição e tenacidade na Copa, mas ficou marcado por um injusto boato: o de que pegava no sono durante treinos e até jogos. Ficou difícil desmentir a história depois que fotógrafos flagraram o comandante de olhos cerrados em pleno banco. Na comissão técnica todos sabem, porém, que Feola sofre de angina. Quando abaixa a cabeça e fecha os olhos, está apenas esperando a angustiante dor no peito passar. De qualquer forma, Feola parecia não ligar para a boataria. Paulo Machado de Carvalho também não se importava. Afinal, o cartola conhecia o técnico de longa data e sabia muito bem do que Feola era capaz: montar um time bem arrumado, trabalhar sem alarde e manter uma convivência agradável com todo o elenco de jogadores.

Edição Extra: A DELEGAÇÃO
VEJA, junho de 1958

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