sábado, 28 de junho de 2008

Todos os milagres de Paulo Coelho


O jornalista Fernando Morais, autor de algumas das mais celebradas biografias lançadas no mercado editorial brasileiro, como os best-sellers Olga (1985) e Chatô, o Rei do Brasil (1994), já vasculhou de arquivos militares a manuscritos em russo para o conteúdo de suas obras. Mesmo com essa experiência, ele se surpreendeu no início de 2007, ao receber a chave de um enorme baú negro, quase do tamanho de um guarda-roupa, camuflado como apoio de um televisor no quarto de empregada de uma luxuosa cobertura em Copacabana. O dono do baú, o escritor Paulo Coelho, deu mais que a chave: deu-lhe autorização para usar o material como bem entendesse. Morais tinha não só a liberdade de acessar os diários, as cartas, as fitas, as fotos e as anotações de mais de seis décadas, mas também a garantia da não-interferência do biografado em nenhum momento da produção da obra. Que mais um biógrafo de celebridade pode querer?

A primeira sensação de Morais foi um calafrio na espinha. “Eu imaginava um bauzinho de correspondência”, diz. “Mas, quando tirei o lacre daquela caixa enorme, senti um buquê especial a emanar do interior do baú. Era buquê de ouro puro.” Ele foi retirando, pouco a pouco, os objetos, excitado como se estivesse diante do tesouro de Ali Babá: uma centena de fitas cassete, cadernos e mais cadernos pretos de capa dura, ao todo 170, recheados de cartas, recortes e objetos. Eram os diários de Coelho, escritos e ditados ao gravador entre os 12 e os 48 anos. “Comecei a vasculhar a alma e as tripas dele”, diz Morais. O resultado do exame das zonas obscuras, dos pecados, desvios de caráter e redenções de Paulo Coelho é o livro O Mago (Planeta, 630 páginas, R$ 59,90), que chegou no início do mês às livrarias do Brasil numa tiragem inicial de 100 mil exemplares.

Para recomeçar o projeto, Morais tratou de deletar cerca de cem páginas que vinha redigindo havia dois anos da biografia do escritor brasileiro mais lido no mundo. O projeto, aprovado no fim de 2004 por Coelho e pela editora Planeta, havia rendido 200 horas de gravações com o escritor, além de dezenas de entrevistas com suas ex-namoradas e namorados, desafetos e amigos. Morais decidiu recomeçar. “Um outro Coelho surgiu diante de meus olhos.”

O biógrafo diz ter experimentado, a partir de então, um mergulho no inferno, na vida atormentada e na trajetória mirabolante e megalomaníaca de um jovem que se tornaria a personalidade brasileira mais famosa do mundo, ao lado de Pelé e Gisele Bündchen, e o único autor vivo a ser traduzido em mais línguas que Shakespeare. Seus 19 livros oficiais (sem contar as obras anteriores que renegou) estão traduzidos em 160 paí­ses, em 66 idiomas, e já venderam 100 milhões de exemplares – recorde para os padrões brasileiros, em que 3 mil cópias vendidas credenciam um livro a título de best-seller. Paulo Coelho, aos 60 anos, orgulha-se de ter alterado o padrão brasileiro de sucesso quando publicou seu primeiro livro canônico, O Diário de um Mago, em 1987 – que em um só ano chegaria à marca de 40 mil exemplares vendidos e desencadearia sua carreira internacional.

Desde criança, Paulo deixou registrada sua maior ambição: “Virar um escritor lido no mundo inteiro” e possuir “dinheiro, glória e poder”. Agiu sempre na direção da fama, segundo narra Morais. Sua ambição desmedida o levou a crises de desespero e depressão. Criado em uma família tradicional carioca, parente do escritor José de Alencar, entre outros antepassados célebres, ele se acostumou a ler desde cedo. Tirava péssimas notas no Colégio Santo Inácio, instituição jesuítica onde teve o primeiro mentor espiritual, o padre gaúcho Guy Jorge Ruffier.

Adolescente, passou a viver dilemas sexuais e místicos. Os pais o internaram num hospício, onde diz ter recebido a visita do “Anjo da Morte”. Este anunciou o assalto de sua alma. O jovem propôs uma troca: degolou com uma faca de cozinha um cabrito das vizinhanças e ofereceu o sangue do animal ao espectro. Foi a primeira de muitas esquisitices que se seguiriam. “É um personagem digno de Dostoiévski ou de Nélson Rodrigues”, diz Morais, que o descreve como “sovina”, “paranóico”, “covarde”, “fantasioso” e “sensível”.

A sensibilidade o conduziria a extremos. Se no início foi tímido com as mulheres, logo passou a seduzi-las para as mais diversas extravagâncias sexuais, de ménage à trois a fazer sexo em locais estranhos. Entre muitas estripulias, disse ter visitado uma garota que morava com uma tia-avó e vivido uma cena semelhante à do romance O Casamento, de Nélson Rodrigues. “Como era um apartamento de uma peça, divertiram-se transando diante dos olhos estatelados da anciã, surda-muda e senil – experiência, aliás, que se repetiria algumas vezes”, escreve Morais. Na peça de Nélson, a testemunha involuntária era um ancião paralítico. A semelhança sugere que Paulo Coelho, leitor de Nélson, possa ter se inspirado no cronista – ou inventado a cena descrita em seu diário.

Paulo voltou ao hospício por duas ocasiões, fugiu, envolveu-se com grupos teatrais. Enquanto tentava escrever peças de sucesso, disse ter testado a sexualidade indo para a cama com atores amigos seus, até decidir que não era homossexual. Colecionou mulheres, e as tratava mal. Calou-se ao pedido de socorro de Gisa, quando o casal estava preso numa masmorra do DOI-Codi, órgão de repressão do regime militar. Gisa morreu em 2007 sem ter voltado a lhe dirigir a palavra. Desesperado com a repressão, ele passou a consumir drogas e entrou em 1972 para a Ordo Templi Orientis (O.T.O.), seita satânica fundada pelo místico inglês Aleister Crowley. Numa das invocações ao diabo descritas no livro, ele se masturbou em delírio, pulando como sapo, no centro de um círculo místico. Para ampliar a seita, tentou cooptar menores de idade em Mato Grosso, disfarçando-se de professor de teatro. Quando decidiu romper unilateralmente o pacto, disse a Morais, recebeu a visita do próprio Satã, “que quase incendiou seu apartamento”. Nesse período, manteve uma parceria com o músico Raul Seixas. Foi Paulo quem o iniciou na O.T.O. e nas drogas. A dupla fez 41 músicas, entre elas “Gita” e “Al Capone”, sucessos que lhe renderam fortuna.

Mas não era suficiente para Paulo. Ele queria triunfar na ficção. Em 1982, ao visitar o campo de concentração nazista de Dachau, na Alemanha, teve uma “epifania”: a aparição de seu futuro mestre. Jean era seu nome. Tempos depois, já “materializado”, convocou Paulo a se reconverter ao catolicismo e ingressar na ordem R.A.M., abreviatura para Regnum Agnus Mundi – em latim, Reino do Cordeiro do Mundo. Jean, que Paulo afirma ser um engenheiro francês de origem judaica, teria instruído o noviço a peregrinar pelo caminho místico de Santiago de Compostela. A partir daí, consagrado como mago e tomado por um sentido de missão, começou sua trilha de êxitos, até se converter num astro literário pop internacional. Fernando Morais acompanhou-o em excursões pelo Oriente Médio e pela Europa e oferece ao leitor detalhes dos ambientes seletos hoje freqüentados pelo pecador arrependido.

Não se trata apenas de vida de celebridade, afirma o biógrafo. Paulo Coelho tem importância como renovador cultural. Ele alterou a feição do mercado e ajudou a tornar o livro um fenômeno de massa no Brasil. Isso lhe valeu, em 2004, o ingresso na Academia Brasileira de Letras. “Sua obra merece o lugar que ocupa”, diz o jornalista, com a ressalva: “Ela atrai as pessoas de fé. Não é meu caso”. As histórias de Paulo são narrativas esotéricas recheadas de episódios sensuais e aventuras místicas por regiões exóticas que conquistaram um público sedento de uma nova espiritualidade – para horror de boa parte dos críticos nacionais. Hoje, Paulo os desdenha. Talvez pudesse ter agradado aos críticos com a mais incrível de suas histórias, que ele tinha na mão havia anos, mas não teve coragem de contar: a de sua vida, agora narrada por Fernando Morais. “Sempre namorei a idéia de uma autobiografia”, disse a seu biógrafo. “Mas é impossível escrever sobre si mesmo sem terminar justificando os erros e engrandecendo os acertos – faz parte da natureza humana.” E completou: “Mesmo que eu não me reconheça em seu livro, sei que ali está uma parte de mim”.

O Mago não foi lido pelo biografado antes de ser impresso – fato raríssimo em biografias autorizadas. “Na verdade, não tenho idéia do que estava naquele baú”, afirmou Paulo Coelho a ÉPOCA. Mesmo assim, ele abriu seu conteúdo para Morais – não sem antes lhe propor a decifração de um enigma. Morais deparou nas pesquisas com o testamento do escritor, que determinava a queima do baú imediatamente após sua morte. Paulo revogou o documento, ante a insistência de Morais, com uma condição, num desafio típico de seu temperamento. “Eu lhe dou a chave só se você descobrir quem foi um major que ameaçou furar meus olhos e de meus três amigos numa prisão em Ponta Grossa, em agosto de 1969, quando fomos presos sem motivo”, desafiou a esfinge de 1,69 metro e cabelo branco preso num rabo-de-cavalo, vestida de preto da cabeça aos pés. Morais, habituado a varrer os porões do regime militar (1964-1985), consultou a lista de torturadores do Projeto Brasil Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese de São Paulo, e descobriu que o major em questão era Índio do Brasil Leme, gaúcho e descendente de índios charruas, que passou à história como torturador contumaz. “Mandei a foto do cara para o Paulo, ele se convenceu, mandou me entregar a chave do baú e me deu carta-branca para pesquisar”, diz Morais.

Em geral, as biografias autorizadas são monitoradas pelo biografado, fato que suaviza o personagem. As não-autorizadas, como a que Paulo César de Araújo fez de Roberto Carlos, não têm acesso a fontes essenciais, a começar pelo objeto central da pesquisa. Uma convicção ética fez com que Paulo liberasse o acesso aos porões de sua vida. Há dois anos, quando Roberto Carlos obteve da Justiça que sua biografia fosse recolhida das livrarias, ele defendeu Araújo em um artigo no jornal Folha de S.Paulo, argumentando que ninguém é dono da própria biografia e barrar a publicação de uma obra é cercear a liberdade de expressão. “Paulo segue seus princípios”, diz Morais. Muitas vezes, porém, se arrependeu, como disse a ÉPOCA. Mas ainda pretendia ler o livro: “Franqueei meus diários porque iriam fazer isso mais cedo ou mais tarde. Melhor poder ler aquilo que, algum dia, terminariam escrevendo”.

O que ele deverá ler ainda preocupa Morais. “Agi como as mulheres vampiras que ele cita nos diários: chupei seu sangue”, diz. “Talvez ele fique chateado com coisas como a revelação da psoríase, que o obriga a levar uma pomada nas viagens, além de uma série de indiscrições. Mas fui adiante. Não quis fazer com o leitor aquilo que Paulo não fez comigo: sonegar informação.” Para Paulo Coelho, a biografia em vida tem lhe inspirado momentos de meditação. “Não sei qual será minha reação ao ler o que estará escrito ali”, disse em carta ao biógrafo. “Mas na capela que neste momento está diante de meu campo de visão existe uma frase escrita: ‘Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará’.” A atitude mística e de assombroso desprendimento com a própria história ajuda a entender por que Paulo Coelho – apesar dos detratores – é reverenciado no mundo como uma figura tão especial.

Luis Antônio Giron
Época, nº 524 - junho de 2008

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