sábado, 28 de junho de 2008

Um herói do Brasil para o mundo

A luta da argentina Carolina Larriera para preservar a memória de seu companheiro, Sérgio Vieira de Mello, o comissário da ONU morto num atentado terrorista em Bagdá.

Quem vê Carolina deslizar pela manhã ensolarada da Lagoa ao centro do Rio de Janeiro em cima de uma bicicleta não imagina que a loura de 35 anos, cabelos até a cintura, seja sobrevivente de um dos atentados mais violentos ocorridos no Iraque. Carolina não perdeu a visão como a secretária Lynn Manuel nem teve as pernas amputadas como o especialista em refugiados Gil Loescher. Ela não perdeu a vida como seu companheiro, Sérgio Vieira de Mello, chefe da missão da ONU no país em guerra. Mas perdeu o mundo como ela o conhecia e a fé na organização em que trabalhava como economista havia oito anos. Para Carolina, a ONU não se esforçou o suficiente para salvar o homem de sua vida ou para esclarecer a autoria do atentado.

Em 2003, o brasileiro Vieira de Mello aceitou o pedido do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, de trocar o tranqüilo posto de alto-comissário dos Direitos Humanos em Genebra pelo horror instalado no Iraque em guerra. Iria por quatro meses, desde que pudesse levar junto sua equipe e Carolina. No atentado, morreram 22 pessoas. E do casamento com Carolina, marcado para dali a dois meses, só sobrou a aliança do noivo, que ela usa junto com a sua, na mão direita.

No dia 19 de agosto completam-se cinco anos que um caminhão com mais de 300 quilos de explosivos foi detonado, levando parte do Canal Hotel, endereço da ONU em Bagdá onde Vieira de Mello trabalhava havia 11 meses. O prédio ruiu às 16h27 no meio de uma reunião com cinco pessoas chefiada por Vieira de Mello. Só Loescher se salvou. Sem as pernas. As três horas de agonia que se seguiram dariam um filme de horror. Era o primeiro dos atentados suicidas dos fanáticos da Jihad. O pânico tomou conta dos sobreviventes ensurdecidos pela explosão e cegos pela fumaça.

Sem ferramentas apropriadas para resgatar os presos nos escombros, os seguranças apenas impediam a passagem. Carolina tentou sem sucesso driblar a barreira até bater firme num soldado, escalar as ruínas prestes a desmoronar, perder as sandálias, rasgar a parte de trás da saia sem se importar com o que ficava à mostra e encontrar o que procurava. “Sérgio, estou aqui, você está aí?”, perguntou em castelhano, sua língua natal. “Carolina, estou tão contente, você está o.k.”, ele respondeu. “Minhas pernas estão doendo, Carolina, me ajude.” Ela prometeu tirá-lo dali. “Volte rápido”, ele disse, “te amo.”

“Quero mostrar o Sérgio que conheci, com suas dúvidas, certezas, inseguranças, erros e acertos”
Carolina chora várias vezes enquanto conta o suplício de três horas na busca de ajuda por Bagdá, pela ONU, pelos postos médicos. Só encontrou pessoas saindo de férias ou sem material para içar paredes, ferros, salvar as vítimas. Os jornalistas filmavam a cena. “Não filmem”, ela implorava, “ajudem.” Não deu tempo.

Nos cinco anos que se seguiram, a vida da argentina Carolina Larriera virou de cabeça para baixo. Ela se mudou para o Rio de Janeiro, onde Vieira de Mello nasceu há 60 anos e onde a então futura sogra, Gilda, de 90 anos, se tornou sua fiel aliada. No Rio, ela planeja o que para muitos parece impossível. “Trazer Sérgio de volta”, diz.

Entre as aulas na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e a chefia do DNDi (sigla em inglês para Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas), que funciona no escritório dos Médicos Sem Fronteiras, Carolina desenvolve dois projetos. Um é a pesquisa de remédios para doenças que afetam os pobres, como a malária, mas não são prioridade dos grandes laboratórios. O outro é o próximo 19 de agosto.

Carolina deu depoimento para o documentário de Amal Moghaizel, Quem Matou Sergio Vieira de Mello, falou para outro documentário rodado em Londres para a HBO e forneceu precioso material para a biografia Chasing the Flame (No Rastro da Fama – Sergio Vieira de Mello e a Luta para Salvar o Mundo, Cia. das Letras). A autora, historiadora e ex-assessora de Barack Obama, Samantha Power, virá em agosto para o lançamento da edição brasileira do livro.

Carolina escreve ainda um livro com anotações de Vieira de Mello para revelar o que faltou na biografia de 622 páginas. “Samantha fez a radiografia do homem público, quero mostrar o Sérgio que conheci, dúvidas, certezas, inseguranças, erros e acertos.”

Como faz a cada aniversário do 19 de agosto, Carolina vai liderar um encontro em Nova York com sobreviventes, parentes e amigos das vítimas e dos 200 feridos do atentado de Bagdá ainda sem rumo na vida. Logo voltará ao Brasil para realizar seu maior feito. É a Fundação Sérgio Vieira de Mello, no centro do Rio.

Existe uma Fundação Sérgio Vieira de Mello em Genebra, criada pela ex-mulher do homenageado, a francesa Annie Personnaz, e pelos dois filhos do casal: Laurent e Adrien. Mas está vedada a Carolina e à mãe de Vieira de Mello, Gilda. Annie já não vivia havia dez anos com o marido. Ambos travavam um divórcio litigioso quando ele morreu. Mesmo assim, afirma Gilda, tornou “Sérgio Vieira de Mello” uma marca registrada na Suíça.

“Annie fez de meu filho um produto, como a Coca-Cola, e eu não admito”, diz. “Ninguém pode fazer nada sem pedir licença a ela, que já impugnou alguns filmes e homenagens, reteve bens e objetos que dei para o meu filho, impede que suas teses circulem e não deixa que meus netos falem comigo. Na homenagem da ONU em Genebra, quis negar meu direito de acender uma vela para meu filho.”

Gilda acusa Annie de ter se aproveitado de seu cansaço emocional durante o velório no Palácio da Prefeitura do Rio para levar o caixão do ex-marido para Genebra, onde foi enterrado no Cemetière des Rois. Perto da tumba do escritor argentino Jorge Luis Borges, mas longe da companheira e da mãe. “Fiquei chocada.”

Gilda teme que Annie impeça o funcionamento da fundação brasileira. A fundação conta com o respaldo do presidente Lula e do senador Eduardo Suplicy, autor sem sucesso de apelos a Kofi Annan para que houvesse uma apuração precisa sobre a autoria do atentado. E com figuras de peso na cena internacional, como a alta-comissária de Direitos Humanos e sucessora de Vieira de Mello, Louise Arbor; do fiscal do Tribunal Penal Internacional, Luis Moreno Ocampo; da ex-ministra de Desenvolvimento da Noruega e atual vice-diretora do Unicef, Hilde Johnsson; e da embaixadora da Boa Vontade da Acnur (Alto-Comissariado da ONU para Refugiados) e cantora lírica Barbara Hendricks.

Mas ninguém dará mais força ao projeto que José Ramos-Horta. O presidente do Timor Leste contou com o apoio de Carolina enquanto se recuperava num hospital da Austrália do atentado que sofreu neste ano. “Falei para ele quanto gostaria de ter acompanhado Sérgio a um hospital, aonde ele nunca chegou. Vivi uma experiência catártica.” Ramos-Horta foi o primeiro a anunciar, em janeiro, num banquete oferecido por Lula em Brasília, a criação da fundação no Brasil.

Foi no Timor que Sérgio Vieira de Mello fez a virada profissional e limpou de quebra a imagem da ONU, desgastada pela guerra da Bósnia em 1994. Os capacetes azuis ou serviam de “sanduicheiros” ou eram tachados de inúteis até em filmes como No Man’s Land, do diretor bósnio Danis Tanovic. Tudo em nome da neutralidade que, segundo Samantha Power, Vieira de Mello seguia à risca, deixando passar em branco os crimes de guerra dos sérvios. Ganhou, por isso, o apelido de “Sérvio” Vieira de Mello. Também andou pelas lojas de Belgrado à procura de um presentinho para o ditador Slobodan Milosevic, porque, dizia, em nome da paz negociaria “até com o diabo”. “Tive de apertar a mão de criminosos de guerra”, afirmava. Mas foi humilde para retornar aos Bálcãs em 1999 durante a investida da Sérvia sobre o Kosovo e o bombardeio da Otan às posições sérvias.

Foi no Timor, como “governador de fato” de 1999 a 2002, que Vieira de Mello chegou ao auge da carreira, denunciando as violações de direitos humanos cometidas pelo governo da Indonésia – que reivindicava a posse do Timor e se opunha à independência do país. Responsável por reconstruir o país das cinzas, o brasileiro hoje figura na galeria dos mártires do Timor.

Vieira de Mello atuou em lugares que vão de Bangladesh ao Sudão, da Moçambique recém-independente à América Latina dos ditadores, do Líbano durante o ataque israelense aos campos palestinos de Sabra e Chatila ao Camboja de 1 milhão de mortos, da Iugoslávia destruída à Ruanda em frangalhos. “O medo”, dizia, “é péssimo conselheiro”, e repetia como seu pai, diplomata “aposentado” pelo golpe militar de 1964, “a audácia é o dom dos vencedores.”

Assediado por jornalistas do mundo inteiro que reconheciam nele um líder aberto ao diálogo e às críticas, formado em Filosofia pela Sorbonne, em Paris, Vieira de Mello era dono de um incrível charme. Power descreve-o como “um misto de James Bond e Bob Kennedy”.

O cineasta irlandês Terry George (Hotel Ruanda) prepara a filmagem de Sergio, baseado na vida do brasileiro. Para Terry, “Vieira de Mello era para a ONU o que Che Guevara é para os cubanos, dizer Sérgio é como dizer Mandela...”. George está em dúvida se o protagonista será Daniel Day-Lewis, George Clooney, Brad Pitt...

Para Vieira de Mello, o papel de namorador terminou no Timor, quando conheceu Carolina Larriera. Os dois dividiram casa e conta bancária durante três anos e meio (“Sérgio cozinhava melhor...”), partilhavam o cotidiano prosaico e profissional, planejavam ter uma filha e se instalar no Brasil. A língua do afeto entre os dois era o português. Carolina mostra o anel de água-marinha, uma pedra brasileira. “Sérgio fazia questão”, diz. Ela chora outra vez.

“É como juntar um milhão de peças dolorosas. Além de tudo eu também estava no prédio, a 10 metros da sala de Sérgio. Vivi o impacto da bomba. É como um ricochete, a sacudida que fica no corpo depois que você dá um tiro com uma arma, só que elevado à milésima potência.”

Norma Couri
Época, nº 524, junho de 2008

http://www.sergiovdmfoundation.org/en/home.html

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