quinta-feira, 19 de junho de 2008

Parar para pensar

Não se pode criticar a pronta reação do governo e do Exército - bem como da Justiça no Rio e da Polícia Civil - ao escabroso assassinato de três jovens do Morro da Providência, entregues por uma guarnição do Exército à quadrilha de um outro morro, o da Mineira, para serem chacinados. Com rapidez, os militares foram denunciados e encarcerados. Também se fizeram no tom certo as imprescindíveis declarações para separar a instituição Exército da ação daquela guarnição.

Registre-se, ainda, a acertada visita do ministro da Defesa, Nelson Jobim, na companhia do comandante do Exército, Enzo Peri, ao morro, onde apresentaram o necessário pedido de desculpas do Executivo federal às famílias das vítimas, com as devidas promessas de que o crime não ficará impune. A atitude contrasta com a de outras autoridades, as quais, em situações semelhantes, preferem se solidarizar de longe com os atingidos, de seus palácios ou em viagem pelo exterior.

Entre os diversos ângulos pelos quais se pode analisar a escandalosa cumplicidade de soldados do Exército no assassinato dos jovens está o do emprego da Força para dar suporte a um projeto eleitoral de um candidato à prefeitura do Rio, senador Marcelo Crivella, do PRB, partido da Universal do Reino de Deus e ao qual está filiado o vice-presidente José Alencar. É um gritante desvio nas atribuições do Exército, custeado pelo contribuinte brasileiro para cumprir missões constitucionais. E entre elas não está o apoio a esta ou àquela corrente política. É forte o indício de crime eleitoral, e que precisa ser investigado.

O Exército, é natural, rejeita qualquer vinculação entre a operação e a candidatura de Crivella. Mas, se assim fosse, faria mais sentido a Força atuar em projetos Favela Bairro e nos PACs da Rocinha, Complexo do Alemão e Manguinhos, obras mais importantes do que a do candidato. Outro aspecto, não menos grave, é o cenário de pesadelo que se vislumbra através do que aconteceu no fim de semana no morro: 11 militares, entre eles um tenente e um sargento, estabelecem contato com uma quadrilha de traficantes inimiga daquela que age na Providência - e continuou a agir, pelo que se sabe, mesmo com a presença do Exército - para entregar-lhe três jovens detidos pelos soldados sob a acusação de desacato. Consta que os militares foram recebidos na "boca" do Morro da Mineira não como "alemães", mas como amigos. Como é possível uma guarnição do Exército brasileiro transitar entre traficantes com a tranqüilidade de policiais da banda podre das forças de segurança fluminenses?

Toda a história relatada até agora é um monstruoso exemplo do que acontece quando agentes públicos, supostamente guardiões da lei, agem como criminosos. E, no caso, agiram desde o início, pois, em vez de os jovens serem levados à delegacia do bairro, como era o indicado legalmente, terminaram no quartel da guarnição, onde um oficial superior ao tenente, um capitão, teria ordenado a liberação dos presos, sem que tivesse sido atendido, como se viu.

No momento em que o ministro Nelson Jobim anuncia um projeto de lei para permitir a ação das Forças Armadas na repressão ao crime internamente, as ocorrências nos morros da Providência e Mineira devem ser entendidas como um aviso.

Tem sido elogiada a atuação de soldados brasileiros sob mandato da ONU no Haiti. A pacificação de perigosas favelas em Porto Príncipe costuma ser citada como argumento para a atuação do Exército também na segurança pública interna. Mas todos no Exército estão adestrados para esse tipo de ação? Não parece. Os critérios usados no alistamento de soldados são capazes de detectar a infiltração de criminosos nos quartéis?

São perguntas inquietantes, feitas não só diante do que aconteceu, mas também com base em casos anteriores de desvios de armas dos arsenais das Forças Armadas, e da existência de soldados profissionais que dão baixa e vão trabalhar para o tráfico. É impensável que, amanhã, soldados e oficiais venham a ser cooptados pela criminalidade, como já ocorreu com parte dos policiais do Rio de Janeiro e em algumas outras cidades.

A tragédia do Providência/Mineira tem sido usada por aqueles que se opõem terminantemente à convocação das Forças Armadas para o combate ao crime no país. É um exagero. Há várias formas pelas quais elas podem dar apoio à luta contra a criminalidade, uma questão que já há algum tempo tem a ver com a defesa do estado de direito.

Assim, a resposta do poder público ao ato bárbaro cometido por soldados na Providência não pode se resumir à punição dos culpados. É preciso parar para se pensar sobre a situação real das Forças Armadas brasileiras diante do cerco da criminalidade à população. Sobre como protegê-las e adestrá-las para que de fato sejam um instrumento decisivo na defesa da sociedade.

Editorial - O Globo (19/06/2008)

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