Concentrados no hotel em Hindas, prontos para a consagração: desta vez a seleção brasileira não foi a passeio
A delegação campeã enterrou a era do improviso e dabagunça – comandada por Paulo Machado de Carvalho, foiorganizada, eficaz e prudente. É uma lição para todo o país
Não foi só dentro das quatro linhas que esta seleção campeã mundial inovou e surpreendeu. Nos bastidores da equipe houve outra revolução, quase tão decisiva para a conquista quanto o amadurecimento dos futebolistas do país. A delegação do Brasil na Copa foi um exemplo de organização e eficácia, encerrando um constrangedor histórico de despreparo, bagunças, negligência e até corrupção. Nos certames passados, a seleção viajava ao exterior de forma mambembe, como um bando de peladeiros de final de semana. O Brasil de 1958 funcionou como um relógio suíço. Desta vez não havia cartolas querendo ganhar projeção política ou algum trocado por fora; não existia improviso nos traslados ou desordem na concentração; não havia nem quebra-galhos nem o jeitinho de última hora. A Confederação Brasileira de Desportos (CBD) traçou um plano completo e seguiu esse receituário à risca. O tumultuado mundo do futebol, quem diria, deu exemplo para o resto do país – que, sob os auspícios do presidente Juscelino Kubitschek, tenta se modernizar, crescer e enriquecer.
A CBD começou a preparar o roteiro brasileiro para a Copa no ano passado, com a formação de uma comissão técnica séria e capacitada. O presidente da confederação, João Havelange, confiou ao seu vice, doutor Paulo Machado de Carvalho, a chefia da delegação. O dirigente, patrono do São Paulo Futebol Clube, é um empreendedor de enorme sucesso (entre as suas empresas estão, por exemplo, a TV Record e a Rádio Panamericana). Ele logo avisou: não queria perder tempo com uma patuscada qualquer. Se fosse o chefe, viajaria à Suécia para fazer bonito. E assim foi. A comissão foi montada com o supervisor Carlos Nascimento, um sujeito austero e obcecado pela ordem; o médico Hilton Gosling, um dos melhores do Rio de Janeiro; o preparador físico Paulo Amaral, responsável pelo condicionamento do Botafogo; e o tesoureiro Adolpho Marques, ligado ao Fluminense. A comissão trabalharia sempre em conjunto, tomando as decisões em equipe – respeitada a hierarquia que dava a palavra final a Paulo Machado de Carvalho, é evidente. Faltava a última peça: o treinador. Por causa do modelo de trabalho a ser adotado, o técnico tinha de ser um sujeito aberto, tranqüilo e nada vaidoso. A decisão demorou a ser tomada. Apenas em março a CBD anunciou sua escolha: Vicente Ítalo Feola, de 48 anos, supervisor do São Paulo.
Cáries e lombrigas
O rotundo e pacato Feola não era a primeira opção para ninguém – afinal, não era técnico nem mesmo do seu próprio time, onde o húngaro Bela Gutman ocupava a função de treinador de campo. O sucesso do São Paulo campeão paulista de 1957 atestava a capacidade do indicado, mas temia-se que a seleção ficaria órfã de um comandante de pulso firme e personalidade marcante. Bobagem. Feola tinha o perfil talhado para a função que a CBD imaginava. Conduziria o time sem rompantes desnecessários, aceitaria as decisões do resto da comissão e não provocaria atritos internos. Poucos técnicos no país topariam discutir em equipe a escolha dos jogadores – Feola era um deles. Enquanto o treinador e seus auxiliares selecionavam a lista de convocados, a CBD já tinha pronto todo o itinerário para a Copa – hotéis, vôos, campos de treinamento e deslocamentos por terra estavam marcados desde o ano passado. O médico Gosling foi pessoalmente à Suécia e apontou os locais ideais para a concentração, garantindo conforto e paz aos atletas. A programação, de 7 de abril (apresentação dos jogadores) até 29 de junho (final do Mundial), estava definida nos mínimos detalhes – até o horário dos treinos já fora agendado.
Antes do início dos treinamentos físicos, técnicos e táticos, os jogadores escolhidos foram submetidos a outra etapa inédita numa preparação da seleção. Pela primeira vez, passariam por uma extensa bateria de exames médicos, coisa incomum no futebol do Brasil. Sinal do atraso do esporte nacional, o resultado foi de cair o queixo: os jogadores, que são os mais bem pagos do país, tinham problemas sérios, como lombrigas, circulação ruim e anemia. Há rumores de que um atleta tinha sífilis. Garrincha teve de operar as amígdalas, cirurgia que já deveria ter sido realizada dois anos antes. Isso sem falar nos dentes: foram arrancados centenas deles das bocas dos 33 jogadores que integravam a lista preliminar de convocados. Encerrado o banho de sangue das extrações, o dentista da seleção, doutor Mário Trigo, continuou integrando a comissão. Além de permanecer de prontidão para possíveis emergências odontológicas, ajudava a entreter os atletas – era o melhor piadista do corpo diretivo, característica importante para ajudar a espantar a tediosa rotina das concentrações.
Teste psicotécnico
Nem todas as novidades lançadas pela comissão técnica emplacaram. Em resposta à preocupação geral com as reações imprevisíveis dos jogadores frente a seus rivais europeus, a CBD chamou um profissional jamais antes visto na seleção: um psicólogo. O doutor, chamado João Carvalhaes, prometia testar a inteligência e o equilíbrio mental dos nossos craques para identificar quem tinha um temperamento menos agressivo e impulsivo. Feitos os experimentos, Carvalhaes concluiu que nem Pelé nem Garrincha tinham condição psicológica ideal para enfrentar os desafios da Copa. No caso de Pelé, o especialista apontou preocupação com a imaturidade do craque (que, vale lembrar, ainda tem 17 anos) e sugeriu seu corte da equipe. Garrincha foi reprovado por outros motivos – teria agressividade nula e inteligência inferior à média. Já na Suécia, os testes foram repetidos antes da partida contra os soviéticos. Dos onze titulares, só dois foram aprovados. Curiosamente, Pelé foi um deles (o outro foi Nilton Santos). Se desse ouvido a Carvalhaes, Feola teria de trocar quase o time todo. A comissão, porém, tinha outras virtudes além da organização e do apreço à ciência – assim como as melhores mentes modernas, era coerente e tinha bom senso. O parecer do psicólogo foi ignorado, e os instáveis brasileiros desmoralizaram os robóticos soviéticos.
Edição Extra: A PREPARAÇÃO
VEJA, junho de 1958
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